quinta-feira, março 23, 2006

Cinzas

Estava me sentindo sozinho naquele dia. Queria conversar, mas não tinha ninguém naquela casa, ninguém que poderia matar a minha vontade. Até que me lembrei de uma pessoa, a mesma que eu deixei a muito tempo trancada no porão. Se ela está viva ? Com certeza, ela se alimenta do que eu sinto e do que esqueço. Deixo com ela as roupas que não me vestem mais e as lembranças que não quero recordar. Está tudo lá. Ir ali seria sentir, recordar, voltar ao tempo que eu há tempos abandonei, mas ela era a única a continuar comigo. Não sei porque a deixei presa, entretanto, ela é ligada comigo de alguma forma, então não posso estar longe dela e ela não pode estar longe de mim. Como uma necessidade.

Desci com cautela a escada daquele porão úmido e escuro, com a mão no teto que quase atingia minha cabeça. No final dos degraus existia uma grade que só poderia ser aberto por fora, e a chave está guardada em um cofre à sete chaves. Cada chave está em um canto da casa, escondido, mas faz tanto tempo que não onde sei onde as deixei, porém a muito tempo estou procurando-as, já achei 6, não me lembro de onde deixei a última.

Sentei no último degrau e liguei a luz puxando um cordão que tinha em cima de mim. Metade de uma figura apareceu, sentada em um canto, escondida pela sombra que cobria a parte de cima de seu corpo. Percebi sua mãos brancas, esfoladas por algum motivo. Seus pés estavam atrofiados por falta de uso. Suas costas curvas, como a de um velho.

O espaço era pequeno para mim, mas não para ela, porém, o resto do porão estava cheio com todas as coisas que deixei. Coisas que eu não queria, coisas que ainda não suporto.

Não conseguia ver seu rosto que estava protegido pelas mãos e pela sombra.

O quarto exalava o cheiro de medo e eu podia sentir, me deixava tão enojado que me fazia hesitar em ficar.

Ficamos alguns minutos trocando olhares sem nada dizer.

Lágrimas desceram do meu rosto. “Sinto sua falta”, disse. Ele nada respondeu.

“Você não é o que eu quero ser hoje, não posso andar com você, nunca mais. Infelizmente o deixei há muito tempo e não há nada que eu possa fazer para mudar isso. Você é todas as coisas que eu não quero. Você está sujo por causa de tudo isso que deixei aqui. És uma parte da minha vida que não quero me lembrar, talvez pelo fato do que vai vir junto com você”, disse ainda chorando. “Você ainda não entendeu ? Eu não posso lhe soltar. Seria aceitar minha fraqueza. Sim! Você é minha fraqueza. Por sua causa, eu estou como estou. Por sua causa, pela sua ingenuidade, eu sou assim”.

“Desculpe”, escutei. Fiquei sem palavras. Estava-o fazendo de culpado sendo que ele é a vítima. Não, nós somos.

“Você sabe o quanto é difícil deixa-lo aí. Com você está tudo o que eu sempre quis fazer. Estão meus desejos e objetivos. Como uma pessoa pode viver dessa forma ? Um dia de cada vez”? Parei para tomar ar e continuei: “Você me ensinou que é mais fácil sobreviver do que ter metas, se lembra”?

“Sim, eu me lembro. Eu nunca quis lhe causar problema, Leo, nunca disse que você está errado ! Você tem motivo para me deixar aqui, mas compreenda, com tudo o que você me deixou, veio os seus sentimentos e sua raiva. Eu sou uma bomba que pode explodir perto de qualquer um. Tem dias que nem mesmo essa grade pode me segurar. Nem mesmo esse quarto. Você sabe muito bem o que eu estou lhe dizendo, não ? Naqueles dias que você não se agüenta, são os dias que eu jogo em você todo o peso que você me deixou, mas me sinto culpado por isso quando percebo meu erro”.

Foi nesse momento que me lembrei que não a deixei ali para isolá-la, eu a deixei ali para proteger as pessoas a minha volta, mas é muito doloroso para mim. Agora já sei o porquê de alguns dias nem conseguir andar.

“O fraco aqui não sou eu”, continuou, “é você. Eu sou forte, vivi tudo aquilo e sobrevivi. Fui eu que agüentei as humilhações, fui eu que agüentei as torturas, fui eu que agüentei a solidão. O que você vive hoje nada mais é do que uma alusão ao tempo que eu era você. Você sente falta de ser forte como eu fui e me martiriza por isso. Sim, você deixou sua força aqui há algum tempo e é por causa dela que essa grade não é nada “.

“Sinto falta de você”, retruquei.

“Eu sei. Você não se lembra, mas você se trancou e me deu uma das chaves. Leo, onde você está é o seu mundo, não o mundo real. Até você perceber que o que você vive não é vida, você ficará aí. Essa casa em que você está, Leo, não tem saída. A única saída é entrar neste quarto, mas não vou lhe dar a chave até você estar preparado para isso”.

Comecei a fraquejar, enquanto escutava, tudo o que eu deixei para trás veio a minha mente, meu Deus, como era desgastante. O pior de tudo, o medo que estava naquela sala não era dele, era meu. Eu tinha medo de visitá-lo, de deixar ele me controlar por alguns momentos.
Estava no meu limite.

Subi e voltei a viver minha ilusão, mas esqueci a luz acesa para que na próxima vez que voltar, eu possa ver as escadas.

Mas faltava ainda uma questão. Por quê eu me tranquei aqui dentro ?

Leonardo Lobo